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Na surdina de uma semana esvaziada pelas festas juninas, com parlamentares espalhados por seus redutos eleitorais, uma crise política de alto impacto se desenrola no plenário da Câmara dos Deputados — ou, melhor dizendo, na nuvem digital da Casa Legislativa. Graças ao aplicativo Infoleg, que permite o voto remoto de qualquer lugar com acesso à internet, os deputados votaram, mesmo longe de Brasília, um tema espinhoso: a derrubada do decreto presidencial que aumentou o IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) — uma medida do governo Lula para compensar perdas orçamentárias e atender às exigências do novo arcabouço fiscal.
Mas por trás da discussão técnica sobre impostos, esconde-se um impasse muito mais grave: a insatisfação generalizada do Congresso com a liberação de emendas parlamentares e a crescente desconfiança mútua entre os Poderes da República.
📌 O Estopim: O Decreto do IOF
O decreto presidencial que ampliou o escopo e a carga do IOF foi recebido com críticas generalizadas, inclusive por setores que costumam apoiar o governo. Parlamentares acusaram o Planalto de agir unilateralmente, aumentando impostos sem diálogo prévio com o Legislativo. A resposta veio rápida: o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) para derrubar o ato ganhou força e teve o requerimento de urgência aprovado com expressiva maioria — 346 votos a favor e apenas 97 contrários.
A mensagem política estava dada: a Câmara está disposta a enfrentar o Planalto, inclusive com parte da própria base aliada aderindo à rebelião.
💥 O Gesto Político de Hugo Motta
Mas o gesto mais eloquente não veio da oposição. Veio do presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), um dos quadros mais respeitados do Centrão e até então considerado um aliado leal — ou pelo menos funcional — do governo Lula. Em um movimento calculado, Motta designou como relator do PDL do IOF o deputado Coronel Chrisóstomo (PL-RO), conhecido pela retórica inflamável e por integrar o núcleo duro do bolsonarismo na Câmara.
Nomear um dos parlamentares mais opositores ao governo como relator de uma medida que pode anular uma ação direta do Executivo não é apenas um gesto de equilíbrio de forças — é um recado institucional. E dos mais ruidosos.
💸 Emendas Parlamentares: o Nó da Crise
Nos bastidores, deputados apontam o verdadeiro estopim da crise: a morosidade, a falta de equidade e a opacidade na liberação das emendas parlamentares. Apesar das promessas do governo e dos números apresentados pelo Ministério das Relações Institucionais, a percepção entre parlamentares — especialmente os do Centrão — é de que os recursos não estão sendo liberados de forma transparente, e que há quebra de compromissos firmados durante votações decisivas.
A situação se agravou com uma decisão de alto impacto institucional: o ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, determinou a suspensão dos pagamentos das emendas até que sejam cumpridos todos os requisitos de transparência acordados entre o Executivo, o Legislativo e o próprio Judiciário.
O orçamento impositivo, que deveria funcionar como instrumento de equilíbrio federativo e de representação, tornou-se foco de opacidade e suspeição. O próprio Supremo tem cobrado uma regulação mais clara e pública das indicações e da execução dessas emendas, especialmente as do tipo RP9 (emendas de relator), que ganharam notoriedade como “orçamento secreto”.
Assim, o conflito atual transcende a liberação de recursos: ele toca na legitimidade dos instrumentos de barganha entre os Poderes — e na capacidade do Executivo de manter alianças com base em confiança institucional.
📉 A Derrota de Hoje: Dois Requerimentos, Duas Derrotas, um Governo Isolado
A crise ganhou contornos definitivos nesta quarta-feira (25/06), com a rejeição de dois requerimentos apresentados pela base governista para tentar adiar a deliberação sobre o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) nº 214/2025, que susta o aumento do IOF decretado pelo Executivo.
O primeiro foi o Requerimento de Retirada de Pauta, de autoria do líder do PT, deputado Lindbergh Farias (RJ), que pretendia retirar o PDL da ordem do dia. O segundo, também do mesmo autor, solicitava o adiamento da discussão por uma sessão.
Ambas as iniciativas foram claras manobras regimentais para evitar a votação do mérito ainda nesta data, dando tempo ao governo para negociar com líderes partidários e recompor sua base. No entanto, a Câmara respondeu com votos — e com contundência:
Votação do Requerimento de Retirada de Pauta:
Sim: 104 Não: 349 Total: 453 votos
Votação do Requerimento de Adiamento de Discussão por uma Sessão:
Sim: 99 Não: 354 Total: 453 votos
Essas derrotas consecutivas sinalizam o profundo isolamento do governo Lula na Câmara no que tange à sustentação de matérias impopulares. Mesmo aliados históricos evitaram assumir a linha de frente na defesa do decreto do IOF.
Enquanto o governo tentava recompor a base e costurar um possível adiamento, a Câmara seguiu adiante: o parecer do relator, deputado Coronel Chrisóstomo (PL-RO), foi lido e referendado em Plenário. Ele apresentou voto:
- Na Comissão de Finanças e Tributação: pela aprovação do PDL 214/2025 e de seus 33 apensados, afirmando não ser cabível pronunciamento sobre adequação financeira.
- Na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania: pela constitucionalidade e juridicidade da matéria, recomendando sua aprovação na forma de um substitutivo.
Com isso, a tendência de que a votação do mérito ocorra ainda nesta sessão é fortíssima, especialmente após a sinalização de maioria consolidada contra a vontade do Executivo.
🎯 A MP “Taxa-tudo” e a Tentativa de Contorno
Ciente da derrota iminente, o Executivo reagiu com a edição da Medida Provisória nº 1.303/2025, apelidada de “MP Taxa-tudo”, que altera a tributação de aplicações financeiras e tenta compensar a arrecadação perdida com a revogação do IOF. A MP propõe taxar rendimentos isentos como LCI, LCA, debêntures incentivadas e até criptomoedas — o que gerou nova onda de críticas, desta vez vinda do mercado financeiro e da imprensa econômica.
Ao tentar contornar a perda política com uma alternativa tributária tecnicamente complexa e impopular, o governo arrisca-se a perder em duas frentes: a institucional, por desrespeitar o Parlamento, e a social, ao ser acusado de aumentar impostos disfarçadamente.
⚖️ Conclusão: o Congresso quer mais do que diálogo
O episódio revela uma verdade crua da política brasileira: a governabilidade não se sustenta apenas com base ideológica, mas com entrega institucional concreta. Diálogo sem liberação de emendas, sem respeitar a liturgia dos acordos e sem reciprocidade política, é retórica vazia para um Congresso que detém cada vez mais poder.
A escolha de Chrisóstomo como relator, portanto, é um aviso: ou o governo recompõe sua relação com o Congresso — com transparência, sim, mas também com eficácia — ou enfrentará um Legislativo disposto a se rebelar até mesmo em pautas que antes pareciam técnicas.
E enquanto isso, o STF, vigilante, lembra a todos que transparência não é moeda de troca — é cláusula pétrea da democracia.
Em Brasília, a política não se faz só de discursos — se faz, acima de tudo, de sinais. E este sinal foi claro.





