Leonardo Loiola Cavalcanti
Em meio ao acirramento da polarização na sociedade brasileira, a transparência e o respeito pela diversidade de pensamento em debates públicos emergem como requisitos indispensáveis para o avanço democrático. A resistência encontrada em 2019, ao propor um debate na Comissão de Diversidade Sexual da OAB/DF, exemplifica os obstáculos presentes na inclusão de perspectivas diversas na formulação de políticas públicas. A expulsão sem o devido processo de defesa ou contraditório sublinha não apenas um desrespeito às normas internas, mas também à essência do diálogo democrático.
A dicotomia entre conservadores e progressistas nos debates atuais revela uma ironia marcante. Enquanto conservadores se aprofundam nos argumentos de pensadores frequentemente citados pelos progressistas, para contestá-los, nota-se uma relutância por parte dos progressistas em apresentar e discutir abertamente essas bases teóricas, contribuindo para um cenário de incompreensão e ambiguidades.
Para ilustrar, vejamos como a legislação e os discursos em defesa dos direitos dos grupos LGBTQIA+ se apoiam nos estudos de pensadores como Marx, Engels, Judith Butler e Horkheimer, entre outros, sem necessariamente apresentar ao público a construção desse pensamento filosófico. Um exemplo disso é o “Anteprojeto do Estatuto da Diversidade Sexual e Gênero, hoje Projeto de Lei do Senado nº 134/2018″, que destaca:
“Art. 5º – A livre orientação sexual e identidade de gênero constituem direitos fundamentais.
1º – Ninguém pode ser privado de viver a plenitude de suas relações afetivas e sexuais, vedada qualquer ingerência de ordem estatal, social, religiosa ou familiar.”
A introdução do dispositivo que reconhece a livre orientação sexual e identidade de gênero como direitos fundamentais desafia diretamente as concepções tradicionais sobre a estrutura familiar e o papel da autoridade parental. Isso levanta uma questão crucial: qual é a origem filosófica dessas ideias progressistas que estão moldando as novas legislações?
A ausência de uma discussão aberta sobre os fundamentos teóricos dessas mudanças deixa um espaço vazio, muitas vezes preenchido por conservadores. Alguns, por falta de conhecimento sobre as profundezas da filosofia que sustenta essas mudanças, limitam-se a reagir a conclusões apresentadas sem a compreensão do raciocínio por trás delas. Essa desconexão entre a base teórica e a percepção pública cria terreno fértil para teorias e interpretações que distorcem a realidade.
Para trazer luz a essa falta de transparência nos debates públicos e oferecer um entendimento mais sólido sobre as bases das propostas legislativas atuais, é crucial explorar as contribuições de pensadores influentes na teoria da ideologia de gênero. Esses pensadores fornecem a estrutura conceitual que desafia as normas tradicionais e propõe uma reconfiguração das relações sociais e familiares.
Vejamos:
“A propriedade privada somente poderá ser suprimida quando a divisão do trabalho puder ser suprimida. A divisão do trabalho, porém, na sua origem, não é nada mais do que a divisão do trabalho no ato sexual, que mais tarde se torna a divisão do trabalho que se desenvolve por si mesma. A divisão do trabalho, por conseguinte, repousa na divisão natural do trabalho na família e na divisão da sociedade em diversas famílias que se opõem entre si, e que envolve, ao mesmo tempo, a divisão desigual tanto do trabalho como de seus produtos, isto é, da propriedade privada, que já possui seu germe na sua forma original, que é a família, em que a mulher e os filhos são escravos do marido” [Karl Marx e Friedrich Engels: A Ideologia Alemã].
“entre as relações que influem decididamente no modelamento psíquico dos indivíduos, a família possui uma significação de primeira magnitude. A família é o que dá à vida social a indispensável capacidade para a conduta autoritária de que depende a existência da ordem burguesa” [Max Horkheimer: Autoridade e Família, 1936, republicado posteriormente in Teoria Critíca, 1968].
“não somente a vida sexual dos esposos se cerca de segredo diante dos filhos, como também da ternura que o filho experimenta para com a mãe deve ser proscrito todo impulso sexual; ela e a irmã têm direito apenas a sentimentos puros, a uma veneração e uma estima imaculadas” [Max Horkheimer: Autoridade e Família, 1936, in Teoria Critíca, 1968].
“a subordinação ao imperativo categórico do dever foi, desde o início, o fim consciente da família burguesa. Os países que passaram a dirigir a economia, principalmente a Holanda e a Inglaterra, dispensaram às crianças uma educação cada vez mais severa e opressora. A família destacou-se sempre com maior importância na educação da submissão à autoridade. A força que o pai exerce sobre o filho é apresentada como relação moral, e quando a criança aprende a amar o seu pai de todo o coração, está na realidade recebendo sua primeira iniciação na relação burguesa de autoridade. Obviamente estas relações não são conhecidas em suas verdadeiras causas sociais, mas encobertas por ideologias religiosas e metafísicas que as tornam incompreensíveis e fazendo parecer a família como algo ideal até mesmo em uma modernidade em que, comparada com as possibilidades pedagógicas da sociedade, a família somente oferece condições miseráveis para a educação humana. Na família, o mundo espiritual em que a criança cresce está dominada pela idéia do poder exercido de alguns homens sobre os outros, pela idéia do mandar e do obedecer” [Max Horkheimer: Autoridade e Família, 1936, in Teoria Critíca, 1968].
“Durante a maior parte do tempo a teoria feminista supôs que haveria uma identidade existente, entendida através da categoria da mulher, que constituía o sujeito para o qual se construía a representação política. Mas recentemente esta concepção da relação entre a teoria feminista e a política foi questionada a partir de dentro do próprio discurso feminista. O próprio sujeito “mulher” não pode ser mais entendido em termos estáveis ou permanentes. Há uma farta literatura que mostra que há muito pouco acordo sobre o que constitui, ou deveria constituir, a categoria “mulher”. O filósofo Michel Foucault mostra que os sistemas jurídicos de poder produzem os sujeitos que eles em seguida passam a representar. Nestes casos, recorrer não criticamente a um sistema como este para emancipar as mulheres é obviamente auto sabotador. A denúncia de um patriarcado universal não goza mais da mesma credibilidade de outrora, mas é muito mais difícil desconstruir a noção de uma concepção comum de mulher, que é conseqüência do quadro do partriarcado. A construção da categoria “mulher” como um sujeito coerente é, no fundo, uma reificação de uma relação de gênero. E esta reificação é exatamente o contrário do que pretende o feminismo. A categoria “mulher” alcança estabilidade e coerência somente no contexto da matriz heterossexual. É necessário, portanto, um novo tipo de política feminista para contestar as próprias reificações de gênero e de identidade, uma nova política que fará da construção variável da identidade não apenas um pré-requisito metodológico e normativo, mas também um objetivo político. Paradoxalmente o feminismo somente poderá fazer sentido se o sujeito “mulher” não for assumido de nenhum modo” [Judith Butler: Gender Trouble, feminism and tjhe subsversion of identity, 1990, Routledge, New York].
“Para falar sobre as alternativas revolucionárias, é necessário começar por dizer que as mulheres, no plano biológico, são diferenciadas dos homens. A natureza produziu a desigualdade fundamental, que foi, mais tarde, consolidada e institucionalizada, em benefício dos homens. As mulheres eram a classe escrava que mantinha a espécie, a fim de que a outra metade fosse liberada para o trabalho, admitindo-se os aspectos escravizantes disso, mas salientando todos os aspectos criativos.
Esta divisão natural do trabalho continuou somente à custa de um grande sacrifício cultural: os homens e as mulheres desenvolveram apenas uma metade de si mesmos, em prejuízo da outra metade. A divisão da psique em masculina e feminina, estabelecida com o fim de reforçar a divisão em função da reprodução, resultou trágica. A hipertrofia do racionalismo do impulso agressivo e a atrofia da sensibilidade emocional nos homens resultaram em guerras e em desastres culturais. O emocionalismo e a passividade das mulheres aumentou o seu sofrimento. Sexualmente os homens e as mulheres foram canalizados para uma heterossexualidade altamente organizada, nos tempos, nos lugares, nos procedimentos e até nos diálogos.
Deve-se, portanto, propor, em primeiro lugar, a distribuição do papel da nutrição e da educação das crianças entre a sociedade como um todo, tanto entre os homens, quanto entre as mulheres. Estamos falando de uma mudança radical. Libertar as mulheres de sua biologia significa ameaçar a unidade social, que está organizada em torno da sua reprodução biológica e da sujeição das mulheres ao seu destino biológico, a família.
Em segundo lugar, a segunda exigência será a total autodeterminação, incluindo a independência econômica, tanto das mulheres quanto das crianças. É por isso que precisamos falar de um socialismo feminista. Com isso atacamos a família em uma frente dupla, contestando aquilo em torno de que ela está organizada: a reprodução das espécies pelas mulheres, e sua conseqüência, a dependência física das mulheres e das crianças. Eliminar estas condições já seria suficiente para destruir a família, que produz a psicologia do poder. Contudo, nós a destruiremos ainda mais.
É necessário, em terceiro lugar, a total integração das mulheres e das crianças em todos os níveis da sociedade. E, se as distinções culturais entre homens e mulheres e entre adultos e crianças forem destruídas, nós não precisaremos mais da repressão sexual que mantém estas classes diferenciadas, sendo pela primeira vez possível a liberdade sexual “natural”. Assim, chegaremos, em quarto lugar, à liberdade sexual para que todas as mulheres e crianças possam usar a sua sexualidade como quiserem. Não haverá mais nenhuma razão para não ser assim. Em nossa nova sociedade a humanidade poderá finalmente voltar à sua sexualidade natural “polimorficamente diversa”. Serão permitidas e satisfeitas todas as formas de sexualidade. A mente plenamente sexuada tornar-se-ia universal” [Shulamith Forestone: The Dialetic of Sex, 1970, Bantam Books, New York].
A análise do Projeto de Lei do Senado nº 134/2018, especialmente seu Art. 5º, revela uma notável interseção com as ideias apresentadas por Marx e Engels, Horkheimer, Butler e Firestone, apesar das diferenças contextuais e temporais. Essa disposição normativa, ao proclamar a livre orientação sexual e identidade de gênero como direitos fundamentais, e ao rejeitar qualquer forma de ingerência estatal, social, religiosa ou familiar nas relações afetivas e sexuais, ecoa os chamados de transformação social e reconfiguração das relações de poder expressos pelos autores mencionados.
Karl Marx e Friedrich Engels, em sua crítica à propriedade privada e à divisão do trabalho, enfatizam como as relações familiares se entrelaçam com as estruturas econômicas para sustentar a ordem capitalista. O Projeto de Lei do Senado nº 134/2018 desafia indiretamente essas estruturas ao promover a autonomia individual sobre as normas impostas pela família, refletindo a ideia de Marx e Engels de superar as divisões sociais e familiares que perpetuam a desigualdade.
Max Horkheimer, ao destacar o papel da família na manutenção da ordem burguesa e na promoção de uma conduta autoritária, também encontra paralelos no projeto. A rejeição de qualquer ingerência familiar, conforme proposto pelo Art. 5º, visa diminuir a autoridade familiar tradicional, que Horkheimer critica, promovendo assim uma sociedade mais igualitária e menos autoritária.
Judith Butler questiona as categorias fixas de gênero e argumenta contra a reificação de identidades de gênero dentro de estruturas heteronormativas. O Art. 5º do projeto alinha-se com essa visão ao afirmar a fluidez da orientação sexual e identidade de gênero como direitos fundamentais, desafiando as normas sociais e legais que tentam fixar ou limitar a identidade e a expressão de gênero.
Shulamith Firestone, por fim, discute a necessidade de superar as diferenças biológicas como base para a desigualdade social, propondo uma reorganização radical da sociedade que elimine a opressão baseada no gênero. O projeto, ao enfatizar a autodeterminação em questões de orientação sexual e identidade de gênero, ressoa com a visão de Firestone de uma sociedade onde as diferenças biológicas não determinam o status social.
Em resumo, o Art. 5º do mencionado projeto reflete e avança muitas das críticas e propostas filosóficas e políticas apresentadas pelos autores mencionados. Ao promover a autonomia e a liberdade individual nas esferas da orientação sexual e da identidade de gênero, o projeto desafia as estruturas tradicionais de poder e autoridade, alinhando-se com uma visão progressista de transformação social que busca superar as desigualdades e repressões baseadas no gênero e na sexualidade.
A falta de transparência na apresentação desses fundamentos teóricos contribui para a polarização, permitindo interpretações livres e muitas vezes distorcidas pelos conservadores. Esse cenário sublinha a necessidade premente de debates públicos mais transparentes, que não apenas informem adequadamente todos os participantes, argumentos e fundamentos para a aplicação de determinada norma, mas também promovam um diálogo construtivo sobre as direções que nossa sociedade escolhe seguir.
Conduzir debates no Congresso Nacional e em outros espaços públicos com maior transparência e disposição para a boa-fé é imperativo. Isso implica expor claramente os fundamentos teóricos das legislações propostas e fomentar um espaço de diálogo onde todas as vozes sejam ouvidas. Superar a polarização no Brasil exige um compromisso coletivo com a clareza, a honestidade intelectual e o respeito mútuo. Apenas por meio dessa abordagem poderemos aspirar a uma sociedade mais inclusiva, justa e verdadeiramente democrática.