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“O homem político, enquanto age, vive entre o risco e a hesitação; hesita, e faz um pacto com a circunstância.” — Hannah Arendt
Este é o segundo capítulo da série de análises críticas, após a matéria sobre o Centrão. Aqui, focalizamos o Poder Executivo — sua lógica de sobrevivência política, suas concessões ao Centrão e sua dinâmica de chantagem que mantém o Estado suspenso.
O Poder Executivo, no ideal republicano, seria o executor da vontade geral, o guardião da administração pública com base na legalidade, impessoalidade e eficiência. Deveria conduzir o país por diretrizes estáveis, técnicas e orientadas ao bem comum, com planejamento de longo prazo e respeito à institucionalidade. No entanto, esse ideal permanece no plano das abstrações doutrinárias, completamente divorciado da realidade política brasileira.
Na prática, a Presidência da República tornou-se um balcão de resistência permanente, um posto de comando refém de chantagens e pactos precários. A busca pela tal “governabilidade” no presidencialismo de coalizão degenerou em presidencialismo de chantagem, onde o governante de plantão administra crises institucionais fabricadas, negocia sua própria sobrevivência, e governa cada vez menos.
Imagine o Poder Executivo como um equilibrista sobre o mesmo fio de algodão que sustenta a República. Cada passo do Presidente é condicionado a uma nova negociação com o Congresso; cada projeto exige concessões; cada tentativa de autonomia resulta em retaliações. A caneta presidencial, outrora símbolo de autoridade, tornou-se instrumento de troca.
O Presidente assume o cargo não apenas para governar, mas para manter acesa a esperança de controle diante de um Congresso fisiológico, uma elite política predatória e uma opinião pública volátil. Ministérios são transformados em moedas de barganha, cargos comissionados viram favores, e Medidas Provisórias substituem o debate democrático por expedientes emergenciais, que já se tornaram regra.
O Executivo deixa de ser o motor de políticas públicas para se converter em uma máquina de autoproteção e manipulação, sacrificando planejamento em nome da permanência. O que se vê é um governo que administra a si mesmo, operando na lógica do instante, da concessão e da adaptação contínua. O Estado, nesse modelo, já não é instrumento do povo — é refém de sua própria engenharia de manutenção do poder.
O método de governabilidade do Executivo brasileiro consolidou-se como um arranjo de chantagens estruturais, onde a sobrevivência política prevalece sobre qualquer diretriz pública duradoura. Em vez de políticas de Estado, há acordos temporários, sustentados em favores, concessões e cumplicidades interinstitucionais.
Além da dependência do Congresso, o Executivo estreita relações com o Judiciário, em especial com o STF, não por respeito institucional, mas por conveniência mútua. Negociações veladas, pactos informais e nomeações acordadas fazem parte de um sistema simbiótico onde o Executivo, para não ruir, aceita sua submissão moral e estratégica.
O resultado é a falência de um presidencialismo que, outrora idealizado como forte e propositivo, hoje se encontra encurralado entre o Centrão e a toga. Um presidente que governa sob vigilância, sem margem real de manobra, preso à arquitetura corrupta que sustenta o sistema.
O Presidente se torna, simultaneamente, servo e senhor do Centrão:
Contudo, essa relação é estruturalmente predatória. O Centrão extrai tudo o que pode do Executivo e, quando não mais útil, ameaça sua estabilidade. É uma simbiose tóxica que transforma o chefe do Executivo em agente da própria servidão.
Aqui cabe uma analogia com A Servidão Voluntária, de Étienne de La Boétie. No tratado, o filósofo francês descreve como a tirania não se sustenta pela força, mas pela adesão voluntária dos governados. No caso brasileiro, inverte-se a lógica: é o governante quem adere voluntariamente aos mecanismos de chantagem e clientelismo, aceitando a condição de refém para não perder o controle.
Trata-se de uma servidão estratégica, onde o Presidente, consciente de sua fragilidade institucional, escolhe curvar-se diante do sistema para preservar-se no poder. O poder executivo abdica de sua soberania prática para continuar exercendo a formal. Governa sem governar. Manda, mas obedece. Decide, mas se submete. Administra, mas não reforma.
Essa condição de “servo por cálculo” é o que define o presidencialismo brasileiro atual: uma liderança que se perpetua não pela força transformadora de ideias ou pela legitimidade popular, mas pela aceitação da decadência como método. Uma presidência que permanece apenas porque aprende a dançar sob o chicote que a fustiga.
As Medidas Provisórias, previstas na Constituição como recurso excepcional para temas urgentes, transformaram-se em instrumento de rotina política. Em lugar do debate democrático, MPs são editadas em série pelo Executivo, condicionadas à negociação paralela com líderes congressuais. Esse padrão expõe a dependência estrutural do Presidente em relação a uma base legislativa fisiológica.
Esse modus operandi corrói o Legislativo e fragiliza o Estado:
O resultado é um processo legislativo soterrado por medidas provisórias, sem debate público, que não apenas inviabilizam reformas de fundo, mas também transformam o Congresso em palco de retaliação e disputas internas. O Executivo, refém de sua própria estratégia, entra em colapso quando precisa governar de verdade, deixando que os acordos de ocasião definam o destino do país.
Preso ao seu próprio ciclo de dependência estrutural, o Poder Executivo descobriu na crise não apenas um desafio, mas um recurso de poder. A instabilidade passa a ser cultivada, medida e manipulada para justificar o reforço de prerrogativas presidenciais, ampliando o espaço de manobra por meio de discursos de emergência.
Cinco dimensões dessa estratégia de crise administrada:
Essa política do medo administrado gera um efeito de dependência perversa: a sociedade e o próprio aparato estatal passam a esperar que só o Executivo possa conter o caos que ele mesmo produz. A retórica do “socorro urgente” drena energia política de reformas estruturais, perpetuando a sensação de impotência coletiva e reforçando o ciclo de autopreservação.
O Poder Executivo brasileiro se tornou o mestre e refém de sua própria engenharia de poder. Suspenso no fio de algodão do presidencialismo de coalizão, ele cede a chantagens, cultiva crises e renuncia ao papel de agente de transformação social. A retórica do governo forte se revela como farsa: por trás do discurso de autoridade, há um vácuo de políticas de longo prazo e uma teia de dependências que dissolvem a soberania prática do Estado.
Enquanto o Executivo sobrevive de favores, emergências e conchavos, o país permanece em compasso de espera — à mercê de discursos alarmistas e de soluções temporárias que apenas replicam o mesmo padrão de instabilidade. A verdadeira travessia exige coragem para romper com o ciclo de servidão voluntária, recusar o abuso de instrumentos excepcionais e reencantar a política com projetos duradouros.
O próximo capítulo desta série volta o olhar ao Judiciário: O Judiciário sob o Fio. Será possível encontrar, dentre as togas, um caminho que fale mais alto que o medo e a conveniência?