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“Quando a lei tenta corrigir um desvio com teatro, o direito vira espetáculo e a justiça, coadjuvante.”
Na última semana, ganhou destaque um projeto de lei inusitado apresentado (16/05) na Câmara dos Deputados: o PL nº 2.346/2025, de autoria do Deputado Zé Trovão (PL/SC), que propõe a proibição do uso de bebês reborn — bonecos hiper-realistas que simulam recém-nascidos — para acessar serviços públicos destinados a seres humanos, como vagas em creches, atendimento em hospitais ou filas prioritárias.
A proposta prevê, inclusive, multa de até R$ 1.000,00 para quem tentar usar um reborn como se fosse um bebê de verdade para burlar filas ou ocupar serviços.
Mas a pergunta que ecoa é: precisamos mesmo de uma lei para isso?
O texto do PL é direto: proíbe o uso de serviços públicos de saúde, educação e transporte para bebês reborn e criminaliza qualquer tentativa de “simular humanidade” para acessar direitos. Segundo a justificativa do autor, haveria registros de pessoas tentando garantir atendimento preferencial com esses bonecos, o que configuraria desvio de finalidade dos serviços públicos.
A proposta pode até soar como uma medida de proteção contra fraudes. Mas, do ponto de vista jurídico, ela é desnecessária, redundante e simbólica.
Por quê?
Porque o ordenamento jurídico brasileiro já dispõe de mecanismos suficientes para punir ou coibir esse tipo de comportamento. Vejamos:
Estelionato (Art. 171 do Código Penal): quem simula condição para obter vantagem indevida está cometendo crime.
Abuso de Direito (Art. 187 do Código Civil): usar um direito para prejudicar o sistema é juridicamente reprovável.
Código de Defesa do Consumidor (CDC): protege o cidadão contra práticas abusivas em filas e serviços públicos.
Regulação interna do SUS: os sistemas de triagem e classificação já são capazes de detectar e lidar com tentativas de burla.
Além disso, em casos mais graves, a responsabilidade civil por dano moral coletivo e fraude contra a administração pública pode ser invocada.
Ou seja: não precisamos de uma nova lei para isso. Precisamos aplicar as que já temos.
O fenômeno dos bebês reborn é complexo e não pode ser reduzido à caricatura da “pessoa louca que quer enganar o hospital”.
Estudos psicológicos mostram que o uso desses bonecos pode estar relacionado a:
Regulação emocional
Vivência simbólica de maternidade ou paternidade
Superação de luto perinatal
Busca por pertencimento e controle emocional
Sim, existem casos em que o comportamento se torna disfuncional — quando o indivíduo perde o contato com a realidade ou compromete sua vida social. Mas, na maioria das vezes, trata-se de um hobby artístico, terapêutico ou afetivo, tão legítimo quanto colecionar miniaturas, aviões, brinquedos ou personagens de ficção.
O problema não é o boneco. O problema é o abuso da preferência, seja com reborns ou qualquer outra forma de engano — e esse problema já está previsto e punido por outras normas.
O projeto de lei é um típico exemplo do chamado “direito penal simbólico”: uma tentativa de responder a fenômenos sociais com leis punitivas que mais alimentam a comoção do que resolvem problemas reais.
É uma prática perigosa. Além de desnecessária, estigmatiza pessoas que usam os bebês reborn com fins legítimos — inclusive terapêuticos — e reforça um discurso de controle moral travestido de racionalidade jurídica.
Pior: desvia o foco das verdadeiras urgências do país. Enquanto isso, filas do SUS seguem lotadas, creches públicas permanecem escassas e o transporte segue precário — não por causa dos reborns, mas por falta de investimento e gestão.
Em vez de criar uma nova lei que pune com multa quem brinca de cuidar, que tal:
Investir em educação sobre os direitos e deveres no uso de serviços públicos?
Promover campanhas de conscientização sobre fraudes em filas preferenciais?
Valorizar a atuação dos servidores públicos que já fiscalizam abusos diariamente?
E, acima de tudo, combater o preconceito e a ridicularização das práticas afetivas que fogem ao padrão?
O Projeto de Lei nº 2.346/2025 é um espantalho legislativo: dá a ilusão de que resolve um problema, mas apenas o dramatiza. Em vez de legislar para os likes, é preciso legislar para as pessoas — com seriedade, empatia e rigor técnico.
Não precisamos de mais leis simbólicas. Precisamos de mais justiça real.
Mais do que uma proposta inócua, o PL 2.346/2025 representa um exemplo claro de desperdício de tempo legislativo e desvio da finalidade do Parlamento. Enquanto o país enfrenta desafios urgentes na saúde pública, educação básica e infraestrutura social, ocupar a pauta do Congresso Nacional com projetos que beiram o folclórico enfraquece a credibilidade do processo legislativo e ridiculariza a função constitucional de legislar.
O excesso de proposições com foco em casos isolados, de forte apelo emocional ou midiático, mas sem relevância normativa, configura verdadeiro abuso do poder de legislar.
Não se trata de moralizar o debate, mas de garantir que os recursos institucionais do Parlamento — comissões, análises técnicas, tempo de plenário — sejam empregados na construção de soluções eficazes, e não na tentativa de transformar exceções em regra, ou desvios individuais em pretextos para criar normas genéricas, moralizantes e inúteis.