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Subtítulo: Quando expressões populares viram infração disciplinar e o bom humor se transforma em crime de opinião no tribunal da seriedade fingida.
“O que não está nos autos não está no mundo. Mas e se o mundo for maior que os autos?”
— Um advogado com miolo bem encaixado
Senhores julgadores da ética,
Venho, respeitosamente — mas nem tanto —, apresentar minha defesa pública contra a acusação mais grave já feita à minha carreira: ter pronunciado a temível, a subversiva, a indecorosa expressão “miolo de pote”.
Expressão que, como se sabe nos rincões de sabedoria do Nordeste (e nas cozinhas mais humildes do Brasil), serve para indicar que alguém está falando coisa sem nexo, fora de contexto, ou, como diriam os romanos, extra petita.
Ocorre que, no contexto do voto de uma ilustre relatora, que resolveu falar mais sobre mim do que sobre os autos, a frase era quase um afago. Em vez de dizer “a Excelência delira num devaneio jurídico fora de qualquer racionalidade processual”, preferi um carinho linguístico: “tá com o miolo de pote”.
Mas, como sabemos, há quem aceite gritos de toga, mas se ofenda com a leveza do povo.
A expressão “miolo de pote” não é ofensa. É afeto disfarçado de crítica. É filosofia oral nordestina. É o jeito que o povo encontrou de dizer que não entendeu o raciocínio, mas entendeu a intenção.
E foi com essa intenção que usei a expressão, inspirado por minha experiência de vida, em que “miolo de pote” é o que sobra da razão quando ela é usada só para ocupar espaço.
Não era ofensa. Era tradução. Do jargão jurídico para a sabedoria popular.
Mas o sistema tem alergia à tradução. O que não cabe no vocabulário da toga é automaticamente reduzido a infração disciplinar.
E há quem confunda o exercício de um direito com um ataque à liturgia do cargo — aquela mesma liturgia que, às vezes, serve mais para disfarçar a ausência de substância do que para proteger a dignidade do processo.
Tudo começou no Processo 07.0000.2019.007527-0, instaurado contra mim por um suposto extravio de autos — uma acusação grave, se fosse verdadeira. Mas a verdade, como se descobriu depois, chegou com atraso: fui absolvido na esfera penal, com base no artigo 386, I, do Código de Processo Penal — por inexistência do fato.
Sim, inexistência. Não foi erro de qualificação jurídica. Não foi ausência de dolo. O fato simplesmente não aconteceu.
E como reagiu o Tribunal de Ética da OAB/DF? Com a fleuma de quem ignora solenemente a realidade e continua o julgamento como se estivesse num teatro em que o roteiro é mais importante que o enredo.
Mais grave ainda: perdi o direito de recorrer plenamente porque a OAB/DF perdeu a gravação da sessão de julgamento.
A prova foi apagada da nuvem do Zoom, sem backup, sem cuidado, sem pudor.
Foi-se a única ferramenta capaz de sustentar tecnicamente minha defesa, pois seria comprovada a parcialidade dos julgadores, que não se atentaram aos autos, mas à minha postura crítica contra o presidente da OAB/DF em grupos de WhatsApp e nas publicações sobre ilegalidades praticadas por seu grupo político, disponíveis neste blog.
E quando reclamei? A resposta evaporou com a nuvem.
E assim, o processo transitou em julgado por culpa da própria instituição que deveria proteger minhas prerrogativas. Bonito, não?
Apresentamos (Dr. Alexandre, advogado técnico e de vasta experiência no TED) o pedido de revisão.
E como manda o figurino da liturgia, fui até o Tribunal de Ética — agora com a alma purificada por uma sentença penal que dizia: ele não fez nada.
Mas ali, no templo da moral, a lógica funciona diferente.
A relatora do processo, em vez de tratar do fato novo e da nulidade processual, começou a discorrer sobre temas fora dos autos. E então, com o mesmo senso de humor que me acompanha desde menino, com a mesma leveza de quem foi casado com uma cearense que dizia “miolo de pote” pra tudo que era bobagem, comentei:
“Dr. ……., a relatora fica falando miolo de pote de questão que não se encontra [encontram] nos autos.”
Foi o fim da civilização.
O presidente da sessão, Dr. Antônio Alberto do Vale Cerqueira, homem de elevada sensibilidade institucional e profunda intolerância linguística, declarou: “ofensa!”.
A relatora, antes imperturbável, tornou-se de repente ferida em sua honra. O processo foi retirado de pauta.
E eu — que tentava revisar uma penalidade fundamentada em um fato que não existiu, num processo originário completamente nulo, com parcialidade unânime dos julgadores e o sumiço do vídeo que seria a prova cabal da parcialidade desses grandes julgadores — passei a responder a outro processo disciplinar, agora por crime de regionalismo.
Meu vocabulário, aparentemente, ofendeu mais que o descuido da própria OAB ao perder uma prova essencial.
O que é mais grave: dizer “miolo de pote” ou apagar uma gravação de julgamento e fingir que isso é normal?
O relator do novo julgamento reconheceu a admissibilidade da revisão. Viu a sentença penal. Confirmou o vício processual. Mas decidiu manter a pena. Por quê?
Porque, segundo ele, a responsabilidade ética independe do dolo. O advogado tem o dever de devolver os autos, mesmo quando não é ele quem os perde.
É a lógica da culpa por ter confiado demais na realidade.
Segundo o voto, a responsabilidade é objetiva, sem escapatória, sem nuance, sem contexto. Um rigor que, curiosamente, desaparece quando é a OAB/DF quem erra — sobretudo quando o acusado é um opositor declarado da gestão desde 2019.
Isso, colocando na fogueira as jurisprudências do STJ, STF e do próprio Conselho Federal da OAB.
Ato cabal de perseguição política!
Disse “miolo de pote” e paguei caro. Mas sabe o que é mais trágico? Que ninguém tenha se incomodado com a perda do vídeo, com a violação da ampla defesa, com a recusa de aplicar a sentença penal absolutória.
Só se incomodaram com a ironia. Com o sotaque. Com a leveza. Com a voz que não saiu do script togado.
Não bastasse o povo nordestino sofrer xenofobia… agora é considerada antiética a expressão “miolo de pote”.
Dizer que algo alheio aos autos é “miolo de pote” não é ofensa. É precisão retórica com sotaque de verdade popular. É a tradução simbólica da máxima forense: “o que não está nos autos não está no mundo.”
Mas ao que parece, para certas figuras togadas, a única língua legítima é aquela que vem de cima, redigida em jargões sem alma e frases sem riso.
Por que se incomodar com uma expressão leve e ignorar condutas gravíssimas nos bastidores da OAB?
Por que não se vê o mesmo ardor ético diante de casos de nepotismo, perseguição institucional, manipulação de processos ou omissão diante de faltas graves de conselheiros?
Por que a linguagem popular incomoda mais que o silêncio cúmplice diante de injustiças?
Porque é fácil fazer da indignação uma arma seletiva: ela se volta contra os que não rezam pela cartilha da pompa, contra os que ousam rir, contra os que desafiam o teatro do poder com a espontaneidade do povo.
É o velho truque da autoridade que não suporta o espelho da crítica: ofende-se com o tom porque não consegue refutar o conteúdo. E se defende da irreverência com processos, como se a toga conferisse imunidade à inconsistência.
O que se pratica, sob o disfarce da moral disciplinar, é uma pedagogia do silenciamento: não se quer ética, quer-se obediência. Não se quer justiça, quer-se reverência.
E nisso, a OAB/DF dá aulas. Aulas de como transformar a crítica em “falta de urbanidade”, o protesto em “conduta incompatível”, e a ironia em “crime contra a instituição”.
A OAB/DF precisa decidir se quer ser guardiã de um rito morto ou defensora da advocacia viva. Porque entre perder uma gravação e abrir um processo contra um advogado que usou uma expressão popular, ela escolheu — escolheu proteger o verniz, e não a justiça.
Este ensaio é um protesto. Mas também é um retrato. Um retrato do que acontece quando o rito encobre o risco, quando o regulamento serve mais à vaidade da instituição do que à razão do direito.
E sim, senhores, continuo achando que há muito miolo de pote por aí.
O problema é que, às vezes, ele veste toga.
Convite à reflexão: o que é mais indecente — dizer “miolo de pote” ou produzir votos vazios, longos, e sem um pingo de ligação com os autos?