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Nos últimos dias, dois episódios expuseram com crueza a fragilidade do discurso estadunidense de defesa da liberdade e dos direitos humanos.
O primeiro foi o anúncio de que o governo Trump estuda aplicar sanções contra o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, sob a alegação de que suas decisões judiciais estariam violando a liberdade de expressão.
O segundo, ainda mais perturbador, foi a revelação de que estudantes internacionais estão sendo monitorados por inteligência artificial, com rastreamento sistemático de suas redes sociais, tendo seus vistos revogados por postarem conteúdos considerados pró-Palestina ou críticos ao governo israelense.
A política, apresentada sob o verniz da segurança nacional, já resultou na expulsão de mais de 1.400 estudantes — muitos dos quais participaram apenas de manifestações pacíficas em universidades americanas. O que une esses dois acontecimentos?
Uma verdade incômoda: a liberdade está sendo usada não como princípio universal, mas como instrumento do poder — moldável, seletivo e ideologicamente condicionado.
No caso de Alexandre de Moraes, o pretexto para a punição é sua atuação firme no enfrentamento às redes de desinformação, às milícias digitais e aos ataques antidemocráticos no Brasil. Sua posição institucional o tornou alvo preferencial da extrema direita, tanto nacional quanto internacional. Agora, ao ameaçar sancioná-lo com base na Lei Magnitsky, os Estados Unidos afirmam estar zelando pelos direitos humanos.
Mas a medida soa muito mais como uma retaliação política do que como um gesto em defesa da democracia.
A retórica oficial fala em proteger a liberdade e combater o autoritarismo. Mas o pano de fundo revela outra motivação: o alinhamento com interesses de figuras como Trump e Bolsonaro — cujos apoiadores, frequentemente envolvidos em práticas antidemocráticas, encontram em Moraes um obstáculo institucional.
A possível sanção, nesse sentido, representa não uma salvaguarda da democracia, mas um ataque transnacional à autonomia do Poder Judiciário brasileiro.
Simultaneamente, a mesma administração que se diz guardiã das liberdades civis promove uma escalada preocupante de controle sobre o pensamento alheio. Entre abril e maio deste ano, endureceu a política migratória voltada a estudantes internacionais. A emissão de novos vistos foi temporariamente suspensa, enquanto o Departamento de Estado passava a implementar protocolos de vigilância digital cada vez mais intrusivos. O programa “Catch and Revoke” passou a rastrear com algoritmos as postagens públicas de estudantes estrangeiros, mesmo os já residentes nos EUA.
O resultado? Jovens foram deportados por expressarem apoio ao povo palestino, por publicarem frases como “Free Palestine” ou por criticarem bombardeios contra civis em Gaza. Em vez de liberdade de pensamento, o que se viu foi a instauração de uma máquina de punição ideológica prévia, travestida de segurança. A tecnologia passou a substituir o juízo democrático: redes sociais se tornaram campo minado, onde qualquer desvio de narrativa dominante poderia ser interpretado como ameaça à ordem.
E aqui se impõe a incoerência de forma gritante!
A resposta é tão simples quanto desconfortável: os princípios invocados não servem à liberdade universal, mas à manutenção de interesses geopolíticos específicos.
A liberdade, nesse arranjo, vale quando favorece o poder — e desaparece quando o confronta.
É nesse ponto que a crítica à Primeira-Dama Janja emerge como peça reveladora de uma hipocrisia disseminada.
Janja sugeriu recentemente que o Brasil deveria debater formas de controle sobre os conteúdos de desinformação disseminados pelo TikTok. Sua proposta, feita em tom de alerta, foi imediatamente demonizada por setores da direita, que a acusaram de promover censura e atentar contra a democracia.
No entanto, muitos desses mesmos críticos celebraram o monitoramento das redes sociais realizado pelos Estados Unidos. Para eles, não há problema algum em punir quem defende a Palestina, ou em revogar vistos com base em convicções ideológicas.
A liberdade, nesse discurso, é defendida apenas quando serve aos seus próprios interesses.
Quando o controle vem de Washington, é visto como medida de civilização. Quando vem do Planalto, é rotulado como autoritarismo bolivariano.
Esse duplo padrão é insustentável. Se a fala de Janja — que não propôs censura, mas debate sobre responsabilidade digital — é tida como ameaça à democracia, o que dizer então de um Estado que aplica sanções a ministros de outros países e rastreia pensamentos com algoritmos secretos?
Como justificar tamanha reverência à “liberdade americana” enquanto, no próprio Brasil, nega-se o direito de pensar sobre os efeitos sociais, políticos e cognitivos das redes digitais?
O problema, como se vê, não está na liberdade, mas na sua manipulação.
O que se joga em cena não é a defesa de um princípio ético universal, mas a instrumentalização da liberdade como escudo ideológico.
Quando uma autoridade pune discursos antidemocráticos, é chamada de censora.
Quando um governo estrangeiro pune discursos contrários à sua política externa, é aclamado como bastião da civilização.
A liberdade, assim, se torna uma ficção útil, administrada por quem detém o poder de definir seus limites — e de silenciar os desvios.
Essa seletividade se evidencia também na escolha dos alvos e no tratamento desigual entre manifestações. As críticas de estudantes ao governo israelense são tratadas como ameaças à ordem.
Ao mesmo tempo, expressões de ódio, supremacismo ou neonazismo dentro dos EUA recebem tratamento tolerante sob a justificativa da liberdade de expressão.
A tecnologia, nesse cenário, se torna uma aliada perversa: rastreia pensamentos, antecipa dissidências, neutraliza vozes. O julgamento jurídico cede lugar à vigilância algorítmica.
Nesse ponto, vale recordar os ensinamentos dos clássicos da filosofia e do direito. Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco, nos ensina que a justiça só é plena quando a norma vale para todos. A lei, para ele, deve ser expressão racional da busca pelo bem comum, jamais ferramenta de facção ou instrumento de vingança política.
Quando o direito serve a um grupo e não à coletividade, já não é justiça — é tirania disfarçada de ordem.
Sócrates, diante de uma condenação injusta, não fugiu da pena. Recusou-se a minar o valor simbólico da norma, mesmo sabendo que ela lhe custaria a vida.
No Críton, declara que desobedecer à lei seria destruir a própria base da vida cívica. Sua morte é um testemunho radical da crença de que o respeito à norma — mesmo que aplicada com erro — é condição para a existência da justiça como bem coletivo.
Essa mesma concepção ética é resgatada pelo jurista Guilherme de Souza Nucci, que lembra em seu Código Penal Comentado que a norma jurídica deve atender aos interesses da sociedade, não de políticos ou ideologias passageiras.
O uso do direito como arma para proteger aliados e punir opositores fere o Estado Democrático de Direito em sua essência. A lei deve ser imparcial, previsível e universal. Qualquer outra aplicação — ainda que sob o pretexto da moral — é autoritária por natureza.
Vivemos tempos em que a liberdade de expressão virou retórica moldável ao sabor do vento ideológico. Quando um estudante tem seu visto cassado por defender a autodeterminação palestina, o que se normaliza não é uma política migratória — mas uma arquitetura de punição antecipada contra a dissidência. Vivemos tempos em que a coerência virou um artigo de luxo.
Os que gritam por liberdade se calam diante da repressão seletiva. Os que denunciam censura quando se sentem contrariados celebram o silêncio imposto aos que pensam diferente. A liberdade, nesse cenário, deixa de ser direito — e vira privilégio de grupo.
Confrontar esses dois episódios — a tentativa de sanção contra um magistrado e a perseguição a estudantes — nos obriga a reconhecer que o discurso de liberdade, muitas vezes, é apenas um dispositivo de dominação revestido de moralidade.
Punem-se juízes por julgarem. Estudantes por opinarem. Povos por resistirem. E seguimos assistindo, passivamente, ao espetáculo de uma democracia que escolhe a quem a liberdade deve servir.
A pergunta que fica não pode ser silenciada: de que liberdade estamos falando?
Da liberdade de dizer tudo — ou apenas o que agrada aos donos do poder?
A verdadeira liberdade só existe quando protege os diferentes, quando desafia a conveniência, quando resiste aos ventos de circunstância. Enquanto isso não for realidade, continuaremos reféns de uma liberdade que serve ao poder — mas jamais ao direito ou à justiça.