Por Leonardo Loiola Cavalcanti
O sistema bicameral que estrutura o Poder Legislativo brasileiro oferece um marco institucional no qual as funções de legislar e fiscalizar se desdobram. Como Montesquieu proferiu, “o poder deve frear o poder”, e essa máxima ainda ressoa nos corredores do Congresso Nacional. Contudo, quando o legislador opta por desconsiderar princípios fundamentais, como a proporcionalidade, incorre no risco de abuso de poder.
Não é mera trivialidade observar que a atividade legislativa requer adesão irrestrita aos princípios constitucionais. Na percepção de Hans Kelsen, “a norma fundamental é o alicerce da validade de um sistema jurídico”. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal (STF) atua como guardião da Constituição, velando para que todas as normas e leis emanadas estejam em consonância com a Carta Magna.
O princípio da proporcionalidade, já apontado em julgados como [RE 200.844 AgR] e [RE 898450], torna-se um instrumento de correção e ajuste da atividade legislativa. No entanto, observa-se com frequência crescente iniciativas parlamentares que se desviam desses postulados, obstaculizando a celeridade legislativa e ignorando precedentes jurisprudenciais. Como alertou Ronald Dworkin, “quando os legisladores ignoram os precedentes e a proporcionalidade, desmantelam o arcabouço que legitima sua própria atuação”.
“O Estado não pode legislar abusivamente, eis que todas as normas emanadas do poder público – tratando-se, ou não, de matéria tributária – devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do substantive due process of law (CF, art. 5º, LIV). O postulado da proporcionalidade qualifica-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais. Hipótese em que a legislação tributária reveste-se do necessário coeficiente de razoabilidade. [RE 200.844 AgR, rel. min. Celso de Mello, j. 25-6-2002, 2ª T, DJ de 16-8-2002.] = RE 480.110 AgR e RE 572.664 AgR, rel. min. Ricardo Lewandowski, j. 8-9-2009, 1ª T, DJE de 25-9-2009”
“Legislador não pode escudar-se em uma pretensa discricionariedade para criar barreiras legais arbitrárias e desproporcionais” […] “a sociedade democrática brasileira pós-88, plural e multicultural, não acolhe a idiossincrasia” (RE 898450, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 17/08/2016, processo eletrônico repercussão geral – mérito dje-114 divulg 30-05-2017 public 31-05-2017).
No mesmo passo, há diversas decisões judiciais no mesmo sentido, de repudiar e declarar inconstitucionais leis elaboradas pelo Congresso Nacional, mas que não cumpriram a simetria desejada pelo texto constitucional, a saber:
(REsp 1519860/RJ, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 17/05/2018, DJe 25/05/2018); (STJ, REsp 1910240/MG, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 26/05/2021, DJe 31/05/2021); Repercussão Geral (Tema 1.169); (STJ, HC 525.249/RS, Rel. Ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, julgado em 15/12/2020, DJe 18/12/2020) e (STF, HC 191836, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 23/11/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-037 DIVULG 26-02-2021 PUBLIC 01-03-2021); [RE 197.917, rel. min. Maurício Corrêa, j. 6-6-2002, P, DJ de 7-5-2004.]; [ADI 1.231, rel. min. Carlos Velloso, j. 15-12-2005, P, DJ de 28-4-2006.] e (ADI 764-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 17-9-1992, Plenário, DJ de 8-4-1994.)
Este cenário não apenas compromete a efetividade de outras proposições legislativas mais urgentes, mas também amplia o fosso entre a vontade popular e a atuação dos parlamentares. Tais ações podem encontrar seu antídoto no Código de Ética da Câmara dos Deputados, que prevê sanções que vão desde advertências até a cassação do mandato, em casos mais extremos que configuram o crime de responsabilidade, conforme estipulado no Art. 55 da Constituição Federal de 1988.
É preciso frisar, portanto, que as consequências desse abuso de poder de legislar não afetam apenas a esfera parlamentar, mas se estendem para a sociedade e o Estado como um todo. São elas que sofrem quando normas injustas e desproporcionais são debatidas e, por vezes, implementadas. Na concepção de John Rawls, “a justiça é o primeiro valor da ordem social, assim como a verdade é para os sistemas do pensamento”.
Dito isso, não é raro observar no seio do Congresso Nacional iniciativas legislativas que buscam alterar o ordenamento jurídico, em flagrante desacordo com os fundamentos constitucionais e as decisões interpretativas emanadas do Supremo Tribunal Federal. Um exemplo ilustrativo é o debate acerca do casamento entre pessoas do mesmo sexo, o que vem causando críticas de todo o meio jurídico e acadêmico, uma vez que o STF já reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo, onde se percebe que certos projetos ou relatórios propostos por membros da Câmara dos Deputados contrariam frontalmente o entendimento consagrado pelo STF como constitucional.
Portanto, cabe aos órgãos competentes e à própria sociedade a vigilância constante sobre os atos do Poder Legislativo. Afinal, como bem colocou Roscoe Pound, “a lei deve ser estável, mas não deve ficar estagnada”. A atividade legislativa, quando pautada pelo respeito às diretrizes fundamentais e princípios constitucionais, contribui para a evolução de uma nação que se pretende cada vez mais democrática e justa.